O discurso da extrema-direita tem sido filiado na retórica fascista, mas outra dimensão, menos explorada, é a do discurso civilizacional e racial do colonialismo.
No discurso nacionalista identitário em França, como em Portugal, está presente o mesmo ressentimento contra os que conquistaram a liberdade em guerras que a potência colonial perdeu, o mesmo pulsar revanchista e a mesma recusa em reconhecer os crimes coloniais. Este ressentimento é explorado por líderes populistas, atribuindo todos os males dos seus países aos imigrantes – um discurso demagógico cujo eco se amplifica em tempos de crise.
No discurso nacionalista identitário em França, como em Portugal, está presente o mesmo ressentimento contra os que conquistaram a liberdade em guerras que a potência colonial perdeu, o mesmo pulsar revanchista e a mesma recusa em reconhecer os crimes coloniais.
As sondagens mostram que a extrema-direita francesa poderia ter mais de 30% dos votos na primeira volta nas eleições presidenciais de abril de 2022 (em 2017, Le Pen obteve 21,5 %). Particularmente grave é a emergência de Eric Zemmour como o candidato com hipóteses de passar à segunda volta.
Como não ficar indignado ao ouvir Zemmour, propulsado por uma onda mediática, propagandear a tese da“grande substituição “– os antigos colonizados iriam agora colonizar a França –, ao ouvi-lo defender a tortura e afirmar que os franceses que apoiaram a libertação da Argélia deviam ter sido fuzilados. Como não ficar arrepiado quando cerca de 40% dos eleitores dizem que votariam em alguém que defende Pétain e retoma as teses antissemitas contra Dreyfus.
Para os nacionalistas, os crimes coloniais, o racismo civilizacional com que os justificavam, não devem ser denunciados porque poriam em causa o passado glorioso e sem mácula que propagam. Para eles, ser francês ou português significa solidarizar-se com os crimes do passado, como faz Zemmour que depois de afirmar que o General Bugeaud “começou a massacrar os muçulmanos e mesmo certos judeus” quando chegou à Argélia (1840) acrescenta que “ser francês” é estar ao lado do general. Não é por acaso que Zemmour fala de guerra civil civilizacional, alicerçando o seu discurso na ideologia racista com que era justificada a exploração colonial.
Ainda mais inquietante é que poucos parecem dispostos a confrontar a retórica dos populistas. Os candidatos da direita democrática (LR), incluindo o antigo comissário europeu Michel Barnier, competem para ver quem se apropria melhor do discurso de Le Pen e Zemmour contra os imigrantes e aplaudem a proposta indecorosa do Presidente do Conselho Europeu de financiar um muro entre a Polónia e a Bielorrússia.
Em 2017, Macron foi eleito com um discurso de desconstrução da retórica identitária nacionalista que vitimiza o colonizador. Em plena campanha eleitoral declarou que o colonialismo era um crime contra a humanidade,e no seu mandato tomou algumas iniciativas importantes para reconhecer os crimes do Estado francês,nomeadamente durante a guerra da Argélia, bem como a recente devolução pela França de 26 obras-primas que tinham sido pilhadas ao Benim. Estas ações inscrevem-se num processo iniciado por Chirac quando reconheceu a responsabilidade do Estado francês ,sob autoridade de Pétain, na deportação de judeus para os campos de extermínio.
Infelizmente, o discurso corajoso sobre o colonialismo foi acompanhado por uma visão securitária sobre as migrações e por posições antimuçulmanas de membros do seu governo, o que contribui à banalização da retórica da extrema-direita.
Macron ainda é a melhor alternativa ao nacionalismo identitário – as sondagens dão como certa a sua passagem à segunda volta das eleições. A sua vitória parece, hoje, provável, não apenas ou sobretudo pelo trabalho de memória anticolonial, o seu legado mais promissor, mas porque conseguiu revalorizar o papel do Estado na crise pandémica e conquistar a Alemanha para um ambicioso plano de recuperação europeu – exatamente o contrário da política de austeridade neoliberal seguida pela União na grande depressão de 2008 e de que os portugueses, mas também os franceses, sofreram as consequências. Caso tivesse continuado a aparecer como o Presidente preocupado antes de tudo com os interesses da alta finança, teria tido a mesma sorte dos seus antecessores: Sarkozy e Hollande falharam o segundo mandato.
A vitória de Macron será mais difícil do que em 2017. Parte da esquerda terá dificuldade em seguir o apelo, se o houver, de votar em Macron na segunda volta. Para isso contribuíram as opções políticas de Macron, mas também a fraqueza do centro-esquerda . Mélenchon, líder da França Insubmissa, assume-se como um populista de esquerda e contribuiu para a diabolização de Macron.
No momento em que o Parlamento português votava contra o orçamento, estava a ler Dora Bruder, de Patrick Modiano, reconstrução nos traços do presente da memória perdida de uma jovem francesa judia enviada, como milhares, pelos colaboracionistas para o campo de Drancy e de lá para o extermínio em Auschwitz. Enquanto lia, pensava que o grande beneficiado da dissolução do parlamento seria o Chega, partido que alimenta o mesmo ódio e desejo de revanche contra os oriundos das colónias portuguesas e propaga a mesma retórica racista sobre o passado imperial.
Chega, partido que alimenta o mesmo ódio e desejo de revanche contra os oriundos das colónias portuguesas e propaga a mesma retórica racista sobre o passado imperial.
O que devemos aprender com a França é que o triunfo da democracia sobre o populismo exige alternativas políticas reais, mas também a desconstrução do discurso racista colonial. Para Portugal, essa conclusão não é displicente numa altura em que se quer colocar uma pedra no debate sobre o colonialismo e a guerra com que a ditadura o quis perpetuar.