
Álvaro Vasconcelos
Biden, no Departamento de Estado, defendeu uma política externa progressista afirmando o seu compromisso para com a defesa dos Direitos Humanos, uma solução diplomática para a crise humanitária no Iémen, pondo termo ao apoio à guerra criminosa da Arábia Saudita e avisou Putin de que os anos de cumplicidade de Trump com autocratas chegaram ao fim.
Biden afirma que “o nacionalismo, o iliberalismo, o autoritarismo e a xenofobia” avançaram, fragmentando a ordem internacional, criando um fosso entre a consciência universal e a capacidade das instituições para protegerem a nossa humanidade comum, como o fracasso da resposta da comunidade internacional à pandemia o comprova.
As medidas já tomadas por Biden e Harris na ordem interna mostram uma presidência empenhada em unir a América na sua diversidade étnica e social. Passar-se-á o mesmo em relação ao Mundo?
A transição de poder do Ocidente para a região Indo-Pacífico acelerou-se nos anos de Trump, sobretudo pela continuação da emergência da China e, embora menos intensa, pela progressão da Índia. As consequências da pandemia, a forma como a China tem sabido combatê-la, tendem a antecipar o momento em que os Estados Unidos deixarão de ser a principal potência económica – muito provavelmente, nesta década.
O America first de Trump — a tentativa nacionalista de trocar as voltas ao mundo para retornar ao tempo da hegemonia americana — estava condenado ao fracasso. Biden anunciou “o regresso da diplomacia” , e pretende reconstruir a ordem multilateral liberal “sob liderança americana”, restabelecendo “as alianças democráticas” , nomeadamente, com os Europeus, que Trump tratava como “inimigos.”
A ordem internacional liberal assentava na predominância das democracias na ordem internacional no fim da II Guerra Mundial. Hoje, não é só o peso da China que se tornou um obstáculo, é também o facto de a regressão democrática ter enfraquecido o campo das democracias. Esta regressão foi particularmente sentida em potências emergentes com ambição global, como a Índia e o Brasil, mas também em potências regionais como a Turquia.
Nada parece indicar que a administração Biden aceite o inevitável crescimento económico e tecnológico da China, o que pode ser o calcanhar de Aquiles da sua política internacional.
Nada parece indicar que a administração Biden aceite o inevitável crescimento económico e tecnológico da China, o que pode ser o calcanhar de Aquiles da sua política internacional.
Biden irá certamente continuar a garantir a superioridade militar dos Estados Unidos, tentará impedir que a China ganhe a batalha da transição tecnológica e procurará recuperar o soft power americano, o seu poder de atração, a sua capacidade de influência, como diz Biden “não pelo Exemplo do Poder, mas pelo Poder do Exemplo.”
A convicção de Biden é que só reforçando o campo democrático, contrariando o avanço da extrema -direita, será possível reconciliar a interdependência com a capacidade da comunidade internacional para responder aos desafios comuns como a pandemia e a urgência climática e a proliferação .
Contudo, as democracias, para responderem aos desafios globais, têm de serem motores de uma ordem internacional capaz de congregar o esforço de estados autocráticos, como a China ou a Rússia, com os liberais.
O regresso dos Estados Unidos ao acordo de Paris sobre o clima e à OMS são a prova das convicções multilaterais da nova administração, assim como é a disponibilidade para regressar ao acordo nuclear com o Irão ou a extensão do Novo Tratado Start, de limitação das armas nucleares, com a Rússia.
A grande questão que continua em aberto é a posição de Biden em relação à Organização Mundial do Comércio (OMC).
A OMC é a instituição-chave das relações com a China, se a administração Biden ali quiser dirimir as divergências comerciais, será possível construir um multilateralismo inclusivo e, por isso, mais eficaz, eventualmente capaz de integrar a China num sistema de normas e regras comerciais e tecnológicas.
A Cimeira das Democracias de Biden, a ter lugar ainda este ano, é a continuação lógica, a nível internacional, da luta contra o populismo na ordem interna, em que serão discutidas questões como a corrupção, a segurança dos processos eleitorais, a desinformação, a responsabilidade das redes sociais e os modelos autoritários.
A Cimeira das Democracias de Biden, a ter lugar ainda este ano, é a continuação lógica, a nível internacional, da luta contra o populismo na ordem interna, em que serão discutidas questões como a corrupção, a segurança dos processos eleitorais, a desinformação, a responsabilidade das redes sociais e os modelos autoritários.
A Cimeira corre, contudo, o sério risco de ser vista como a criação de uma aliança anti chinesa, o prenúncio de uma nova bipolaridade.
O regresso dos Estados Unidos ao multilateralismo e a afirmação de uma política externa progressista dever ser saudada por todos, mas a credibilidade americana está profundamente ferida.
O fantasma de Trump é um sério obstáculo, pois muitos dos aliados dos Estados Unidos temem que esta seja só uma presidência de 4 anos e que Biden fique sujeito a uma forte pressão interna isolacionista. Mas podemos pensar também, olhando para as medidas que a administração Biden já tomou, e se propõe tomar no combate às desigualdades sociais e raciais, que elas poderão prevenir o regresso ao poder de um líder populista em 2025.
Proteger os ideais democráticos, combater o populismo, defender os direitos humanos e, ao mesmo tempo, reformar a ordem internacional, de forma a corresponder à nova realidade do poder internacional, é o dilema que pode e tem de ser superado. O futuro da União Europeia depende do sucesso de tal projeto.
Versão revista do artigo do Público de 7 de Fevereiro de 2021