
Uma presidência Biden- Harris pode reverter a vaga autocrática e trava a destruição da ordem multilateral. Para a União Europeia será uma excelente notícia.
Em 2016, a vitórıa de Trump foi uma notícia dolorosa, tudo em que acreditávamos, as conquistas democráticas da minha geração estavam ameaçadas por uma contra-revolução obscurantista, pela emergência de uma corrente política a que algos têm chamado nacional populista e a que eu, com Humberto Eco, classifico de neo-fascista.
A democracia já regredia, mas foi a vitória de Trump que lhe deu o sentido trágico de vaga autocrática: o Brasil elegeu um reacionário, o Reino Unido abandonou a UE ,a extrema-direita ganhou vento na Europa e as forças mais reaccionárias do Médio Oriente encontraram em Trump um aliado.
O regime de regras e direitos e as instituições internacionais que o sustentam foram ameaçados pelos Estados Unidos, transformados em Estado pária. Putin sentiu que tinha carta branca para destruir a Síria, Erdogan para reconstruir o Império Otomano, a Arábia Saudita para massacrar os iemenitas e decapitar opositores.
Em 2016, Hillary Clinton inscrevia-se na corrente do neoliberalismo adocicado de Bill Clinton e Blair e considerava os trabalhadores que sofriam com os efeitos de uma globalização desregrada, que temiam a concorrência da China, como deplorables. Biden-Harris prometem romper com essa herança.
Quatro anos depois, perante uma pandemia devastadora, Biden, o centrista, incorporou as aspirações dos movimentos populares, das marcha das mulheres ao Black Lives Matter e de milhares de iniciativas cívicas nacionais e comunitárias. Chamou para a sua campanha o talento e o compromisso social e ético de muitos dos seus líderes e disse-lhes querer ser “o Presidente mais progressista desde Roosevelt.” O que explica ter passado a defender os elementos essenciais do Green New Deal, da redução das emissões de CO2 ao combate às desigualdades sociais.
Muitos dos que o apoiaram continuarão mobilizados e a exigir o cumprimento dessas promessas.
O Partido Democrata é hoje menos dependente dos “lobos de Wall Street”, mais capaz de combater o racismo e de promover um modelo multicultural, assente na igualdade de direitos e numa laicidade tranquila.A escolha de Kamala Harris, que se define como afro-americana e no Senado defendeu posições progressistas, é uma prova da evolução do Partido Democrata.
Para aplicar o seu ambicioso programa o Partido Democrata terá também, de conquistar a maioria no Senado. Mas, em todo o caso, o impacto da vitória de Biden será enorme.
A derrota de Trump ajudará a desconstruir a narrativa obscurantista, o mundo das mentiras e das teorias conspirativas, enfraquecendo líderes como Bolsonaro ou Orbán.
Com Biden os Estados Unidos voltarão à Organização Mundial de Saúde e ao Acordo de Paris; regressarão também ao acordo de desarmamento nuclear com o Irão, nas bases de 2015, e darão continuidade aos acordos de controlo de armamento com a Rússia.
Quanto à China, Biden, sem confronto nem complacência, deverá optar pela resolução das divergência no quadro multilateral, de forma a prevenir uma guerra (fria ou mortífera).
Será fundamental tirar partido do momento político criado por uma vitória democrata para reformar as organizações multilaterais, tornando-as mais inclusivas e eficazes.
Esperemos que a UE se aproprie do momento- uma nobre ambição para a Presidência portuguesa.
É imperioso aproveitar o regresso dos Estados Unidos para reformar a OMS e lançar, a partir das Nações Unidas, um plano global para vencer a pandemia, superar a recessão e enfrentar a urgência climática.
Outro futuro será, assim, possível.
Sobre Trump, está tudo dito.
Versão ligeiramente revista do artigo do Público de 3 de Novembro de 2020