Nos últimos dias, o mundo – que tinha dado a questão síria como resolvida com a queda dos principais bastiões do Daesh – acordou para a brutal realidade que muitos não queriam ver. A questão central da Síria não era o extremismo fanático nem o seu fugaz estado islâmico. A questão primária era o conflito entre um regime ditatorial brutal e os seus cidadãos. Na região de Ghouta, a cintura verde de Damasco, a resistência ao regime sobrevivia, para incómodo de alguns, a quatro anos de bombardeamentos.
Em 2011, nas cidades e aldeias de Ghouta, como em Homs, Alepo e Hama, centenas de milhares de pessoas desfilaram exigindo o fim da ditadura e o direito a decidirem o seu destino –a onda da vaga democrática que da Tunísia alastrara a toda a região. É bom lembrar esse momento único na história da Síria moderna, em que os cidadãos perderam o medo e exigiram a liberdade, como é bom ter presente a violência armada com que as manifestações pacíficas foram reprimidas, com cerca de 5000 mortos, alguns filmados pelos soldados que exclamavam “se essa é a liberdade que querem, aqui vai”. Foi em Daraya, onde o jovem Ghiath Matar, talvez inspirado pela revolução portuguesa, distribuía flores às forças de segurança do regime, até ser preso e morto por elas.
Na guerra mundializada de que a Síria é hoje teatro, os sírios e as suas legitimas e nobres aspirações enxergam-se mal na nublosa do jogo estratégico das potências. Era bom pensar mais neles, pois em Ghouta, como ontem em Alepo, reemergem os cidadãos sírios, vítimas de um regime que bombardeia a sua própria população. É já lendária a resistência dos habitantes de Ghouta, desde 2013 vítimas de bombardeamentos quase quotidianos. Logo a 21 de agosto de 2013 sofreram um ataque com armas químicas, em Daraya, documentado em primeiro lugar pelos jornalistas do Le Monde e confirmado pelas Nações Unidas.
A aplicação da estratégia do bombardeamento maciço das cidades e das suas infraestruturas vitais, particularmente dos hospitais, foi o que permitiu ao regime levar à rendição a população de Alepo, com o envolvimento direto da Rússia e do Irão. Perante o sucesso da estratégia seguida e com a impunidade que pensa gozar, Assad atira-se agora contra Ghouta, no seu criminoso propósito de encontrar uma solução militar para a Síria.
Perante o horror da situação, o Conselho de Segurança aprovou, com apoio da Rússia, uma resolução exigindo um cessar-fogo por 30 dias. Mesmo assim, o governo continuou e continua a bombardear, desta vez ao abrigo das peculiaridades do cessar-fogo, exigidas pela Rússia, numa tática já conhecida: apenas durante cinco horas por dia, há corredores humanitários para que os cidadãos possam abandonar a cidade. Desta forma se justifica perante a opinião pública mundial os bombardeamentos contra militantes da oposição, armados ou não, que não abandonarem Ghouta. O objetivo do regime é levar acabo uma limpeza étnica em Ghouta, expulsando a população sunita que se opõe a Assad.
Os sírios continuam à espera, apesar de tudo, que a comunidade internacional aplique o principio da responsabilidade de proteger (R2P)aprovado pela Assembleia Geral da Nações Unidas em 2005, que teve a África do Sul como um dos seus principais promotores, principio evocado na resolução do Conselho de Segurança que legitimou a intervenção militar na Líbia. A forma ilegítima como a resolução foi aplicada pela NATO na Líbia, transformando a responsabilidade de proteger em operação de mudança de regime, tornou a sua aplicação muito difícil, mas não menos necessária.
Estamos em Ghouta de facto perante um crime contra a humanidade, como denunciava a resolução do Bloco de Esquerda aprovada com os votos de toda a Assembleia da República, à exceção dos deputados do PCP, que defenderam os direitos soberanos do regime de Assad, mesmo quando massacra o seu próprio povo. Mas esse direito não existe, nenhum Estado pode impunemente massacra o seu próprio povo, e é responsabilidade da comunidade internacional proteger os cidadãos de crimes contra a humanidade. O PCP, como todos os nacionalistas, coloca a soberania dos estados como bem supremo e vê na defesa dos direitos humanos uma conspiração imperialista.
É evidente que a responsabilidade de proteger nada tem a ver com a invasão do Iraque, como os seus detratores gostam de invocar. O Iraque foi a invasão de um país contra a vontade das Nações Unidas e teve como consequência um enorme sofrimento para a população iraquiana, com os Estados Unidos a cometerem aí crimes contra a humanidade e a provocarem o caso na região.
Os crimes cometidos na Líbia por quem devia proteger a população não devem ter como consequência a impunidade para todos os criminosos de guerra.
Com um balanço de cerca de 500 mil mortos, 6 milhões de deslocados e 5 milhões e meio de refugiados registados , é mais que tempo de a comunidade internacional proteger os sírios.
Do outro lado do Atlântico, os jovens da escola da Florida que procuram pôr fim à venda de armas afirmam que estão fartos da hipocrisia dos que choram os estudantes mortos, mas nada fazem para os proteger. Como eles, devemos condenar o silêncio cúmplice de tantos. Temos a obrigação de fazer tudo que esteja ao nosso alcance e defender a população de Ghouta. Na Síria está em jogo a credibilidade, já profundamente abalada, dos princípios que nos protegem do regresso às guerras totais de extermínio que marcaram o século XX.
Dos Estados Unidos de Trump pouco se pode esperar. A estratégia norte-americana acabou por levar ao domínio russo na Síria. A influência dos atores regionais para uma solução política é frágil: os iranianos estão divididos, pois são os Guardas da Revolução, e não a presidência reformista, que determinam a política para a Síria; já a Turquia continua paralisada pela incapacidade do seu governo de lidar de uma forma pacífica com a questão curda . Neste cenário, é agora com a Rússia, responsável por tantos crimes na Síria, que é preciso construir uma solução política.
Dos europeus muito se deve exigir, apesar de pouco se poder esperar. A Europa deveria encabeçar a procura de uma solução política, envolvendo a Rússia, a partir deste cessar-fogo, mas com disposição para enviar uma força de paz robusta logo que as condições o permitam. O Presidente Macron tem falado da necessidade de reconstruir a Europa política e da defesa e, como o fez Obama no passado, traçou “linhas vermelhas” na Síria. É altura de passar das palavras aos atos.
Nestes tempos difíceis, tão desumanamente longos e brutais, cuja impotência Álvaro Vasconcelos sublinha, não posso deixar, em jeito de comentário, as palavras que Adonis, poeta sírio-libanês, dirigiu, numa carta aberta, a Bashar al Assad em 2012 (Público, 17 de agosto), e que se mantêm profundamente atuais :
“Não podemos defender o regime que está no poder. Não podemos defender nenhum regime árabe. É preciso que todos mudem. É preciso perguntar: «Porquê isto? O que estamos a fazer?» E já o disse e volto a repetir: se a mudança não for uma mudança na sociedade, se não houver uma separação total entre a religião e a sociedade e se a mulher continuar prisioneira da Sharia [a lei islâmica], a mudança de regime não significa nada. pelo menos para mim. É como alguém que tenta substituir um fascista militar por um fascista religioso.”
E às palavras do poeta, que subscrevo, nada me permito acrescentar.
Obrigada Álvaro Vasconcelos por nos lembrar que em Ghouta há rostos com nome!
GostarGostar